A elevação dos juros nos Estados Unidos costuma ser vista como um grande risco para moedas como o real. A tendência natural é de que, diante das taxas mais atrativas oferecidas pelos títulos do Tesouro americano, grandes investidores se retirem de mercados emergentes e direcionem seus recursos para estes papéis, considerados os mais seguros do mundo. Ato contínuo à debandada de dólares, a taxa de câmbio em países como o Brasil é pressionada para cima.
Não é o que se espera desta vez, na opinião do economista Sergio Goldenstein, estrategista-chefe da Renascença DTVM e ex-chefe do Departamento de Operações do Mercado Aberto (Demab) do Banco Central.
Para ele, apesar do aperto monetário em curso nos EUA, a trajetória do câmbio hoje está “bem mais favorável” do que foi nos últimos anos, e por dois fatores: a elevação dos preços das commodities, que beneficia os exportadores e o fluxo comercial brasileiro; e o diferencial de juros. “Está caro apostar contra a moeda”, diz. “Tem espaço para valorizar mais”.
Goldenstein – que acredita no encerramento do ciclo de alta da Selic (taxa básica de juros) na reunião de junho, no patamar de 13,25% ao ano – afirma que a virada de chave da política monetária americana já provocou uma forte reprecificação da curva de juros por lá.
“No passado, havia um grande risco, que era qual seria a reação do mercado quando o Fed [banco central americano] começasse a apertar. Sabemos que o Fed vai fazer muito mais do que todo mundo imaginava pouco tempo atrás, e as moedas se comportaram bem”, afirma. O risco pode retornar se o Fed for além do esperado, que é elevar os juros até 3% ou 3,5% ao ano. Não se trata, no entanto, de um cenário base, segundo Golsdentein.
Sua preocupação maior para o câmbio está, no momento, em solo asiático. “Se houver um cenário de desaquecimento mais forte da China, que gere uma queda de preços de commodities, o real poderia depreciar”, diz. Também não é um cenário base, mas uma possibilidade que está na mesa.
Em entrevista exclusiva ao InfoMoney, Goldenstein falou sobre o que embasa sua expectativa de Selic a 13,25%, comentou sobre os riscos fiscais persistentes no Brasil e apontou para desfechos relacionados ao cenário eleitoral. Confira os principais trechos:
InfoMoney: Na ata da última reunião, o Copom passou a indicar que a alta da Selic no encontro de junho pode ser menor do que o 1 ponto percentual das últimas. Que fatores serão decisivos para o BC dosar a alta daqui para frente?
Sérgio Goldenstein: Quando a gente observa as comunicações recentes do Copom, a interpretação é de que a barra hoje está muito alta para uma extensão do ciclo de ajuste após junho. O BC elencou vários fatores que justificam uma sinalização da proximidade do fim do aperto monetário.
O primeiro e mais importante é que é o Brasil já está num estágio muito avançado do ciclo de ajuste. Estamos com uma política monetária muito contracionista, que tem efeitos defasados. É necessário ter um pouco de sangue frio, pois boa parte do aperto que o BC promoveu ainda não se materializou sobre a atividade, vamos observar isso a partir do segundo semestre.
O segundo ponto é que quando o BC fazia uma descrição do balanço de riscos nos comunicados, considerava haver uma assimetria altista. A implicação disso é que o valor esperado do conjunto de projeções de inflação do BC estava acima do cenário de referência. A novidade do último Copom é que ele já encara o balanço de riscos como equilibrado.
O BC hoje tem foco total na inflação no próximo ano. A projeção para 2023 está acima da meta – que é de 3,25% e o BC está projetando 3,4% – mas é um desvio pequeno. Se fosse relevante, o BC teria menos argumentos para encerrar o ciclo de aperto monetário.
Além disso, no último Copom, o BC foi menos assertivo com relação à continuidade do ciclo. No comunicado, disse que é “provável”, na próxima reunião, a extensão do aperto, com um ajuste de magnitude menor. Não deu certeza do prolongamento.
Hoje, o que o BC discute é muito mais se vai fazer um aperto monetário adicional ou não. Parece improvável, pelo seu linguajar, que o plano de voo seja uma continuidade até agosto.
IM: Isso será possível?
SG: Uma parcela dos analistas avalia que o BC pode até ter a intenção de encerrar na próxima reunião, mas não vai conseguir, assim como não conseguiu a última, porque a inflação continua alta, as expectativas estão piorando, as commodities não dão refresco. Mas na nossa visão, a barra é muito alta para uma continuidade do ciclo.
Já estamos com uma política monetária muito contracionista, com expectativa de inflação de 5,5% nos 12 meses à frente e isso inevitavelmente vai bater na atividade econômica. Tivemos até um início de ano melhor, mas o segundo semestre tende a ser bem pior. Nossa avaliação é de que há forças que vão segurar consumo e investimento.
Junto com isso, a trajetória do câmbio hoje está bem mais favorável. Diferentemente dos últimos anos, o real passou a ter uma performance relativa melhor do que a das moedas pares.
É a melhor moeda emergente, por dois fatores. Um é a elevação dos preços de commodities. Mas o que vem fazendo diferença é o diferencial de juros. Está caro apostar contra a moeda.
Muitos brasileiros, fundos ou pessoas físicas, haviam alocado parte do portfólio no exterior, e agora o custo de oportunidade começa a pesar. A balança comercial está superavitária e o fluxo financeiro, mais equilibrado. Portanto, essa trajetória de câmbio tende a mitigar o choque de oferta que afetou violentamente a inflação nos dois últimos anos.
Para um prolongamento do ciclo de alta, teria de haver uma piora muito forte do balanço de riscos. Algo novo, de repente, uma intensificação do choque de oferta.
IM: Já é possível vislumbrar o momento em que a Selic começará a ser reduzida?
SG: Dois anos de inflação muito alta, em uma economia indexada como a nossa, em que a inércia não é algo desprezível, podem significar uma postergação do início do relaxamento monetário.
Até pouco tempo atrás, o mercado acreditava que isso poderia começar no fim do ano, início do próximo. Agora, parece mais provável que inicie no segundo trimestre ou mesmo no segundo semestre de 2023.
Talvez hoje essa seja decisão que o BC tem que fazer: vai subir mais os juros, ou vai parar em 13,25% e deixar a Selic elevada por mais tempo, até ter a segurança de que conseguirá levar a inflação para meta?
Para que a redução da Selic comece, a principal condição seria uma grande melhora dos indicadores de inflação, uma segurança de que arrefeceu significativamente, de que os choques de ofertas se dissiparam.
Imagine que as commodities recuem bastante, sem que isso afete muito a taxa de câmbio. Haveria uma reversão importante de choque de oferta e, num cenário de demanda fraca e juros ainda contracionistas, a redução poderia ser antecipada, talvez no começo de 2023.
IM: Do lado fiscal, algumas notícias – como aumento de arrecadação ou superávit do setor público – animam o mercado. Ao mesmo tempo, sabe-se que ao menos parte disso se deveu à inflação. Qual é o seu cenário para a situação fiscal do País?
SG: A maior parte da melhoria da arrecadação derivou da inflação alta e do preço elevado das commodities. O problema é quando, com base numa receita mais alta pelo motivo ruim, criam-se despesas permanentes, o que vem acontecendo.
O primeiro fator de preocupação, ainda no ano passado, foi a perda de credibilidade no teto de gastos com a PEC dos Precatórios. É uma medida oportunista para liberar recursos no ano eleitoral. Usar a criatividade em uma regra que estava estabelecida faz perder a credibilidade.
A segunda preocupação é começar a ter uma expansão de despesas com base num resultado fiscal que melhorou devido a ganhos não recorrentes de receita causados pela inflação. Imagina se no ano que vem ou no próximo as commodities despencarem?
O fiscal não está nenhuma tragédia. A inflação, mal ou bem, cumpre um papel. As despesas foram registradas abaixo da inflação, principalmente com o funcionalismo. Houve uma perda para os servidores, o que não deixa de ser um ajuste fiscal. Mas ao mesmo tempo, isso gera demandas. Há setores em greve, não se sabe até quando o governo resistirá à pressão.
A notícia boa foi a queda da relação entre dívida e PIB, que se aproximava de 100% e agora está em 80%. Isso fez o Brasil ganhar tempo. Mas não significa que o fiscal esteja resolvido.
A relação entre dívida e PIB depende de três fatores: superávit primário, juro real e PIB. O que temos para frente é um PIB muito fraco e juro real muito alto. Só o componente do juro real já vai jogar a relação em uma trajetória ascendente.
IM: O senhor acredita que haverá força para manter o teto de gastos?
SG: O teto de gastos foi muito bom no começo. Sabíamos que havia distorções, aprimoramentos que podiam ser feitos. Mas não necessariamente tem de haver a permanência do teto. Podemos ter outro tipo de âncora. Pode ser uma meta de dívida, de resultado primário. O importante é que angarie credibilidade junto ao mercado.
Se um eventual novo governo partir para um populismo fiscal, será um tiro no pé. Depreciaria o câmbio, o que levaria a mais inflação, a juros altos e a retração. Não tem como escapar.
Agora, vale lembrar que a inflação alta está gerando espaço fiscal importante para o próximo ano. O teto de gastos é corrigido por ela e não será uma restrição importante. Então, essa é uma discussão que não necessariamente precisa ocorrer em 2023. Ganhamos tempo para discutir se o teto deve permanecer ou não, ou se haverá uma nova regra fiscal.
IM: Analistas e operadores têm dito que o cenário eleitoral ainda não está fazendo preço nas ações. Qual é a sua percepção a esse respeito nos mercados de juros e câmbio?
SG: Concordo, está em segundo plano. O grande risco é uma deterioração do ambiente institucional – o não reconhecimento do resultado das urnas, por exemplo. Se acontecer e houver tensão, isso espantaria investidores estrangeiros e levaria à depreciação dos ativos.
Uma parcela do mercado pensa que o discurso serve mais para mobilizar militantes do que para ser algo efetivo. Mas caso seja, e não dá para descartar, é um risco, e tem de estar no radar.
IM: Qual é sua projeção para a taxa de câmbio?
Tenho uma visão mais otimista, por alguns fatores.
Nos últimos anos, o País teve um superávit comercial forte, mas esses recursos não eram internalizados, o exportador mantinha o caixa lá fora. Agora, teremos uma balança comercial recorde, em função dos preços das commodities, e imagina-se que esse valor não ficará no exterior, por causa do diferencial de juros. O custo de oportunidade começa a pesar para o exportador. Já observamos dado parcial de fluxo comercial, de março, que melhorou de forma significativa.
Do lado financeiro, o fluxo já melhorou muito a partir do ano passado. De 2016 a 2020, tivemos saídas muito fortes pelo canal financeiro. Essa é uma das grandes razões da depreciação do câmbio nos últimos anos.
Houve redução de alocação de gringo no Brasil na renda fixa, houve maior alocação de recursos no exterior por fundos e pessoas físicas. Mas esses fatores já se esgotaram. A Bolsa voltou a atrair recursos estrangeiros e, do lado dos derivativos, ficou muito caro apostar contra o real. Isso incentiva operações vendidas em dólar, o que pressiona o real para baixo.
Vale lembrar que aos 2%, a Selic estava claramente abaixo do equilíbrio, o que levou a uma taxa de câmbio acima do equilíbrio. Agora estamos indo para o outro extremo. E com os juros agora muito acima do equilíbrio, deveríamos ir para baixo do equilíbrio no câmbio.
A postura do BC reforça essa tendência. Quando o câmbio foi para R$ 5,20, isso incomodou, e o BC interveio com operações spot e de swap. E a munição do BC ainda é grande.
IM: Isso mesmo com os juros subindo nos Estados Unidos?
SG: Sim. No ano passado, a discussão era se o Fed [banco central americano] subiria juros em 2022, e se fizesse isso, a expectativa era de que seriam duas altas de 0,25 pontos. O Fed já elevou os juros [em 0,5 ponto, em maio], já anunciou que vai iniciar a redução do seu balanço em junho e as moedas emergentes tiveram um comportamento muito tranquilo.
Já houve uma reprecificação muito forte da curva de juros americana, que hoje prevê uma taxa final entre 3% e 3,5%.
Na verdade, a minha avaliação agora é oposta: havia um grande risco, que era qual seria a reação do mercado quando o Fed começasse a apertar. Sabemos que o Fed vai fazer muito mais do que todo mundo imaginava pouco tempo atrás, e as moedas se comportaram bem. Agora, até ajuda, já tem muita coisa refletida na curva.
Não estou dizendo que a política monetária americana não possa afetar o câmbio. Imagine que o Fed não pare nos 3% ou 3,5%, que os juros cheguem a 4,5%. Aí, sim, dólar estaria muito forte e nenhuma moeda escaparia. Mas não é o cenário base.
O que me preocupa mais com relação à taxa de câmbio é a economia chinesa. Um dos fatores que suportam a apreciação da moeda são os termos de troca, são as commodities para cima. Se houver um cenário de desaquecimento mais forte da China, que gere uma queda de preços de commodities, o real poderia depreciar.
Também não é um cenário base. Os analistas dizem que a oferta seguirá apertada para diversos tipos de matérias-primas. Mas caso isso ocorra, seria um risco para a moeda. O risco interno é um ambiente de deterioração institucional forte.
Acho que a moeda está com boa trajetória, e tem espaço para valorizar mais.
IM: Seria um movimento de valorização forte, como o que vimos no primeiro trimestre?
SG: Acho improvável agora. Houve uma conjunção de fatores no primeiro trimestre: um fluxo muito forte para a Bolsa, com a realocação global de portfólios; uma elevação de preços de commodities; e o BC subindo os juros. Isso ajudou muito na apreciação do câmbio.
Para a frente, o cenário eleitoral vai entrar mais no radar. Há ainda um pouco da incerteza sobre o Fed. É improvável que nos próximos meses haja um fluxo tão forte para Bolsa como houve no começo do ano. Mas esse movimento pode acontecer no próximo ano, caso a gente tenha um cenário político mais tranquilo e haja segurança quanto à futura política econômica.
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