Do século XVI até ao século XVIII, a moeda espanhola foi a principal reserva de valor no mundo, sendo aceita em quase todas as regiões, dada a grande hegemonia da Espanha naquele período, e das suas vastas reservas de prata. Durante o século XVII, a moeda holandesa também tinha circulação mundial e papel de reserva monetária. Após o século XIX e até a segunda Guerra Mundial, a libra esterlina do Reino Unido se tornou a moeda de referência no mundo.
Mas desde o acordo de Breton Woods, em 1944, o dólar americano se tornou a moeda de reserva de valor no mundo. Afinal, os EUA não haviam sofrido tanto quanto a Europa durante a guerra, e tinha vastas reservas de ouro naquele momento.
Um dos principais debates econômicos atuais é se o dólar irá se manter como a moeda de reserva e a base das transações comerciais. O presidente Lula trouxe esse debate à tona em sua recente viagem à China, mas essa é uma discussão que existe já há alguns anos. Esse artigo não pretende exaurir esse debate, mas sim trazer à luz alguns pontos importantes nessa discussão.
60% das reservas, e 90% das transações são denominadas em dólares
Em 2022, cerca 60% das reservas dos bancos centrais no mundo estavam alocadas no dólar, segundo dados do FMI. Além disso, a divisa americana é usada em mais de 90% das transações no mundo, segundo o Banco de Compensações Internacionais (BIS).
Razões de preocupação com o dólar no curto prazo
Existem razões para estar mais cauteloso com a hegemonia do dólar, tanto no curto, quanto nos médio e longo prazos. Vamos começar brevemente pelas razões de curto prazo:
1) Juros: O Federal Reserve pode estar chegando ao fim do ciclo de aperto de juros, enquanto outros bancos centrais no mundo seguem subindo suas taxas, como o Banco Central Europeu (BCE). Isso pode reduzir a atratividade do dólar em relação a outras moedas, pelo menor diferencial de juros adiante.
2) Crescimento: a economia mundial segue com bastante disparidade. Enquanto a China deve voltar a acelerar o seu PIB em 2023 para 5-6% de crescimento, por conta da reabertura da sua economia, os EUA estão em trajetória de desaceleração, e com um risco de recessão acima de 60% nos próximos 12 meses, segundo o consenso de economistas de Wall Street (dados do Bloomberg).
3) Fundamentos: o índice do dólar em relação a uma cesta de moedas (DXY) chegou ao maior nível dos últimos 20 anos em 2022. Desde então, o DXY já caiu mais de 10% do pico. Além disso, debates em relação ao limite da dívida americana (“debt ceiling”) no Congresso Americano nos próximos meses pode trazer ainda mais riscos aos ativos americanos, como o dólar.
4) Inflação americana: apesar da desaceleração recente, a inflação americana segue em 5,0% nos últimos 12 meses, que ainda é o maior nível desde os anos 90. Enquanto a inflação global segue alta, o que vemos hoje é que os EUA não contam mais com uma das inflações mais baixas do mundo. Isso também reduz a atratividade do dólar, no curto prazo.
Razões preocupação com o dólar em médio e longo prazos
As razões de médio e longo prazo que trazem preocupações em relação à hegemonia do dólar americano incluem:
1) Geopolítica: Os governos de países emergentes, liderados pela China, vêm tentando migrar o comércio bilateral para fora do dólar, e principalmente para o yuan. Após os EUA terem anunciado sanções econômicas à Rússia, banindo o país de acesso ao sistema interbancário SWIFT, outros países, que temem ser alvos de sanções semelhantes no futuro, acenderam uma luz amarela. Além disso, os países emergentes, como o Brasil, questionam a necessidade de ter que utilizar o sistema americano, e o dólar, em transações que não envolvem os EUA – como em uma venda de minério ou soja para a China.
2) Dívida e déficits americanos: Os EUA têm um nível de dívida elevado (82% do PIB) e seguem com déficits em conta corrente entre 3-4% do PIB. Ou seja, os EUA precisam que o mundo siga comprando seus títulos de dívida e seus ativos, para seguir dando suporte ao dólar.
3) Diversificação de reservas: Bancos centrais vêm aumentando bastante as compras de ouro no mercado. Segundo uma matéria recente no FT, essas compras de ouro por BCs globais já estão no maior nível desde 1967. Isso mostra que outros países já estão buscando alternativas de reserva de valor que não sejam o dólar. O ouro cumpre esse papel há centenas de anos, inclusive servindo de colateral à emissão de moeda até 1971, quando os EUA abandonaram o “padrão ouro” da sua moeda.
Como vimos, existem várias razões para estarmos mais cautelosos com o dólar americano em relação a outras moedas e sua hegemonia como a moeda de reserva no mundo. Porém, não podemos chegar a uma conclusão de que a hegemonia do dólar está próxima do fim tão rápido.
Apesar das alternativas existirem — como as moedas de outros países, os metais preciosos e as criptomoedas —, elas ainda não têm o mesmo peso que o dólar para o comércio global, transações financeiras e reservas de governos e bancos centrais.
Mudanças como essa levam uma geração para acontecer, e estão bastante ligadas à hegemonia desses países na economia mundial.
Implicações para você, investidor
Será, então, que os investidores brasileiros não têm que ter reservas em dólar? Não, não é isso que queremos dizer.
A diversificação de moedas e de ativos globais em uma carteira de investimento é essencial para geração de retornos e proteção do patrimônio no longo prazo. Apesar dos riscos em relação ao dólar americano que discutimos nesse artigo, o Brasil segue sendo um país emergente, e com uma volatilidade histórica muito superior aos EUA e outros mercados desenvolvidos. Dessa forma, diversificar os investimentos em outras moedas, como o dólar, euro e outras moedas, segue sendo essencial para atingir uma relação de risco x retorno adequada.
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