Receita reconhece remessa ilegal de dólar com criptos na 25 de Março: “doleiros estão usando”

A Receita Federal reconhece que há no Brasil um problema com a remessa ilegal de dólares utilizando criptoativos, usados para alimentar atividade de contrabando na região da rua 25 de Março, em São Paulo, conforme revelado pelo InfoMoney nesta terça-feira (6).

Fontes ouvidas pela reportagem afirmam que a criptomoeda a Tether (USDT), indexada à moeda americana e que, por isso, não sofre volatilidade, vem sendo amplamente utilizada para esse fim. O ativo é comprado sem a devida declaração ao Banco Central, que não enxerga uma operação de câmbio camuflada — ou seja, evasão de divisas.

O fenômeno ajuda a explicar a dominância desta criptomoeda no Brasil. Segundo a Receita Federal, R$ 109,3 bilhões em USDT passaram pelo crivo do órgão apenas em 2022, quase 69% do total das declarações envolvendo todos os criptoativos no País — incluindo o mais famoso, o Bitcoin (BTC).

Em 2023, dados referentes ao primeiro trimestre apontam que a USDT ficou ainda mais hegemônica, atingindo 82% do mercado cripto brasileiro e movimentando 9 vezes mais que o BTC.

Redes de lavagem de dinheiro

Em nota, a Receita Federal afirma que é de conhecimento do órgão que importadores usam doleiros para completar o pagamento de mercadorias com subfaturamento, e que esses doleiros têm, cada vez mais, empregado criptomoedas em suas transações.

Segundo a Receita, doleiros também utilizam dinheiro em espécie usado nos comércios para alimentar a atividade, e grande volume de recursos provenientes do contrabando é remetido ao exterior através de redes de lavagem que também operam valores para o narcotráfico e outras atividades ilícitas.

“Além de operações com criptoativos, as redes de lavagem podem utilizar o sistema bancário tradicional, operações de comércio exterior, movimentação de valores em espécie ou através de metais e pedras preciosas, entre outros”, disse a Receita.

A autoridade fiscal ressaltou ainda preocupação crescente com a “simbiose entre organizações criminosas e grupos terroristas, que acabam por compartilhar redes logísticas e de movimentação e lavagem de dinheiro”.

O órgão afirma que, dentro de sua competência fiscalizatória e repressiva, está atento a esse cenário e “empregando tecnologia e seu corpo técnico de servidores altamente qualificados para desvendar e combater essas práticas”.

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O Ministério Público Federal em São Paulo diz desconhecer a prática. Já o Banco Central, perguntado sobre a evasão de divisas com uso de criptoativos, disse que não irá comentar.

Segundo o advogado Ricardo Kassin, especializado em crimes envolvendo o uso de criptoativos, pessoas físicas que utilizam criptomoedas para remeter dólares ao exterior sem a devida declaração podem incorrer nos crimes de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e crime contra o sistema financeiro.

Quando realizada por uma empresa para pagamento de importações não declaradas, os crimes podem incluir também contrabando e associação criminosa.

Dificuldade de rastreamento

O uso de criptoativos no Brasil para lavagem de dinheiro e contrabando não é exatamente novo. Em setembro do ano passado, a Polícia Federal deflagrou uma operação que desmantelou uma quadrilha que, entre outros crimes, utilizava ativos digitais para remessas ilegais para o exterior.

Já àquela altura, a PF identificou empresas de fachada que compraram as criptos em exchanges usando o nome de “laranjas”, incluindo pessoas mortas, beneficiários de programas assistenciais e idosos com mais de 90 anos. Além disso, doleiros e comerciantes do Brás e da 25 de Março estiveram envolvidos.

As investigações começaram muito antes, em 2017. Em 2019, resultou na prisão do chinês Jiamin Zhang, também conhecido pelo falso nome Hanran Guo, que, segundo decisão judicial obtida pelo InfoMoney, chefiava a operação financeira de lavagem do tráfico de drogas para a Europa – mas especificamente, a Espanha – em operações de dólar-cabo. Atualmente, esse tipo de transação é amplamente realizado com Tether, no que vem sendo chamado de cripto-cabo.

Lá fora, o uso de USDT é comum para enviar dólares para a China. Segundo o portal especializado em criptoativos CoinDesk, chineses usavam a moeda digital em 2019 para enviar recursos da Rússia. À reportagem, o jornalista chinês Colin Wu, que cobre o mercado cripto do país asiático, conta que a conversão de USDT para yuan é ilegal por lá, mas que é possível que essas pessoas contornem os bloqueios utilizando vendedores individuais conhecidos como P2P.

Atualmente, autoridades usam carteiras digitais apreendidas em operações para tentar identificar transações suspeitas que interagiram com um investigado. Segundo Thiago Bueno, Procurador do Ministério Público Federal no Amazonas e integrante do Grupo de Crimes Cibernéticos do MPF, o trabalho é complexo pois as criptos em si não trazem informações por trás das movimentações.

“O que acontece é que as transações nesses livros caixas na blockchain não utilizam nenhum dado de identificação civil do usuário que fez a operação. Traz o endereço público, que é como um endereço de e-mail. A partir desse endereço público é possível verificar todas as transações nas quais ele esteve envolvido. O desafio das autoridades é vincular esse endereço público com o sujeito que está sendo investigado”, afirma o Procurador da República.

Segundo ele, o trabalho requer a contribuição das exchanges, que são as empresas que de fato podem ter acesso à identificação dos usuários. O problema é que, como essa atividade ainda não é regulada no Brasil, players internacionais não se sentem obrigados a contribuir com investigações, afirma.

Além desse olhar de combate à criminalidade, diz, o fenômeno dos criptoativos é algo que, economicamente, é impossível de ser ignorado. Para ele, deve ser do interesse dos atores sérios do setor que o Estado regule a atividade e crie o regime de licenças previsto no marco legal das criptomoedas aprovado no ano passado.

Conforme reportagem anterior no InfoMoney, a demora na designação do supervisor das criptomoedas no Brasil pode atrasar o regime de licenças de corretoras e OTCs de criptomoedas em cerca de dois anos.

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